sexta-feira, 29 de outubro de 2010

RIOS.

Rios paralelos que já nasceram como se tivessem bebido, antes, um pouco do mar. Gotejam em silêncio sulcando um caminho tímido. Levam tantas lembranças, lavam tantas dores e o medo que mil amores conseguiram plantar. Mas os rios não fazem milagres e quando secam é porque não há mais água que os alimente, não por falta de saudades que devam ser lavadas. Quando secam, ainda resta o vento assoviando entre seus leitos. E depois eles brotam novamente, são rios intermitentes numa vida que é perene de frustrações, alegrias, quedas e levantes - como a vida de tudo o que é vivo.
E se eles correm agora, mansos, finos, poderosos creiam que há motivos silenciosos no fundo da alma que os alimenta. Uma alma de magma em seu fundo, tantas vezes revoltosa, precisa de rios para esfriar seus ânimos, soprar suas feridas e lhe permitir a caminhada solitária.
Não é possível estancá-los, nem consolar a alma de magma, só se pode deixar que corram e se encontrem com seu destino. E depois de molhar a face, elas - que são rios - caem no vazio e salgam a saudade. Lágrimas.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

AREIA

Rolou de onde estava brilhante e alvissareira a pequena pedrinha de areia
Deixou-se arrastar pelo vento que enebria, pela mãozinha que cria
Castelos, bolos, pontes, rostos, rios e sereias
Inocente se permitiu moldar, escondida que estava das águas do mar
Foi revolvido o chão, cavado pelo plástico do brinquedo
E a areinha sem medo se deixou lavar
Colocada lá em cima na ponta do castelo
O sol lhe encontrava e seu brilho feliz se via
Porque nem nos seus mais belos dias
Chegou a pensar que do escuro de onde vivia
Podia outra vez avistar seu lar
Nascida do desgaste das rochas, polida no encontro das pedras
Ela que de cristal fino se fizera
Fora expulsa de seu leito por Hera
Megera ciumenta do fundo do mar.
Agora no topo ela estava e já não via a hora
De ser engolida pelos braços fortes da água
Que pode a tudo arrasar.
E não foi sem espanto e riso
Que vendo a espuma branca destruir o castelo
Feito por mãos de mover impreciso
Que a areia de alma rosa e cristal liso
Deixou-se beijar pela boca fria do mar
A criança chorava e ela partia
Sendo levada ao lugar de seu berço.
Criança mimada não chore, eu sou só areia
E tudo que te ofereço
Qualquer outro grão um dia pode te dar.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

SÓ TINHA DE SER COM VOCÊ

Tem certas canções que se deve tocar só uma vez. Tocar para uma só pessoa.
Tem certos momentos que só acontecem só uma vez. Com uma certa pessoa.
Há partes guardadas que só se acessam uma vez - por uma pessoa.
Há portas fechadas que só se abrem uma vez - por aquela pessoa.
Não adianta fazer repetir a música que o som não acontece. Não adianta ir ao mesmo lugar que o momento não se repete. Não adianta se dar de outras maneiras, nem entrar pelas janelas que não se repetem as pessoas, nem se escancaram os caminhos da alma.
A música - havia de ser pra você.
O momento - havia de ser com você.
As partes de mim guardadas - haviam de ser pra você.
As portas fechadas - haviam de te deixar entrar.
Se assim não fosse, não haveria mais azul-céu, não existiria mais paz-teus braços, não seria amor-seu cheiro. Só haveria céu, braços e cheiros. Só seriam mais azuis, paz e amores. Mas sem você nada disso se especializaria em mim.
Você que me conhece e quer mais me saber, entende que sempre fui sua e tudo isso havia de ser pra você.

{texto suspirado na música "Só tinha de ser com você", Tom Jobim}

terça-feira, 19 de outubro de 2010

EXPLICANDO

Como resolvi te amar? Não é um caminho fácil de descrever, portanto não o farei. Mas posso fazer assim: posso te dizer como te amarei. Amarei de uma maneira que nunca amei e como ninguém nunca deitou em meu coração.

Esta noite sonhei com você e a sensação é de que lhe entregava todo meu calor - mas eu ainda permanecia quente. Eu não morria de amar, porque amor nem mata. Eu tinha resolvido amar sem cuidados, sem movimentos pensados e palavras escolhidas. Então te amei. Acordei te amando. Morrerei deste jeito.

Não sentia frio e desde que te amo é mesmo assim - sem ventos fortes, sem mares revoltos, sem tremores de terra. Eu elegi você pra ser pra sempre e todos os fenômenos se dobraram a isso. Até a inveja e o medo. Até tudo de mais instável neste mundo, em mim e em você ganha calmaria.

Não são promessas: é verdade. Embora sinta vontade de subir escadarias, rezar novenas, acender velas e dizer amém; faria tudo isso para passar o tempo e estar contigo novamente. Cada vez que vejo você é como se todos os sentidos fossem perdidos junto com os meus. E isso não é poesia: é saudade. E os ritos diários ganham ainda mais automatismo quando você liga e diz: "tô pensando em passar aí pra te ver, vai fazer alguma coisa mais tarde?". Sinto vontade de responder: morrer de saudade quando você for embora. É que o tempo nesse momento pára. Quando estou contigo ele dispara e depois se arrasta na lama como um soldado em treinamento.

O meu simples jeito de amar é só um coração que resolveu abrir as cortinas e dizer pela primeira vez na vida: entre e fique à vontade. Mas fica pra sempre.

Entendeu?

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

MENINA DOS LAÇOS ROSADOS

Há anos um parque grande tinha chegado em sua cidade, mas ela não tinha tamanho, não tinha idade para usar todos os brinquedos. Nem podia andar no maior e mais brilhante de todos eles: a montanha-russa. Bem que tentou, com seu vestidinho impecável, entrar na fila e comprar ingresso - foi barrada, a pobrezinha. O máximo que havia lhe sobrado de emoção era andar na xícara de chá gigante, que cabia mais duas menininhas como ela. De gigante: nada.
O tempo passado, agora a menina tinha crescido e depois de amargar três anos à espera de andar na montanha-russa,  ela podia ir à desforra. Ela se esbaldaria. Seu vestidinho impecável iria voar, bater na testa, subir pra cabeça e a calcinha ia ser vista pelo parque inteiro. Daí, ao pensar em sua calcinha de babadinhos sendo vista por toda a cercania, ela tremeu de medo. Lembrou-se que durante aquele tempo inteiro tinha se comportado bonitinha, tinha sido uma mocinha, andado na xícara de chá que girava bem perto do chão, tinha engomado o vestido e recebido elogios. Todos passavam e diziam: "linda menina de lacinhos rosa de cetim", "que coisinha mais arrumadinha, nem mostra a calcinha nos brinquedos", "eu queria que minha filhinha fosse assim. Rebeca, por que você não imita a Menina dos Laços Rosados?". Ela se acostumara em ser a referência da xícara, se apegara ao chão, aos laços, ao vestido e ao bumbum bem guardado na calcinha de babados.
Onde, agora, o desejo de voar bem alto? Onde estava o sonho de sentir frio no estômago, ficar tonta e vomitar o algodão-doce? Onde os gritos, medo e gargalhadas? Não era o que a Menina sempre quisera? Agora ela podia, mas o que lhe algemava ao chão? Não tinha mais o moço do guichê lhe negando ingresso. Não tinha mais fita métrica lhe barrando a estatura. Não tinha nem mais vontade de rodar no mesmo lugar e ver a mesma paisagem passando na xícara. Mas tinha as mães das meninas sem laços, de calcinhas à mostra, tinha a referência da xícara de chá, tinha os elogios ao seu bom comportamento no parque [porque ninguém jamais houvera visto sua calcinha; era até um mistério e motivo de apostas: tinha a Menina de Laços Rosados algum suporte para segurar o vestido?].
E mais tinha: que ela precisava escolher entre viver seu sonho de andar no melhor brinquedo do parque ou se embriagar no resto do líquido entorpecente daquela xícara no chão, que de tanto rodar lhe deixara tonta por todos estes anos. Tinha que ela bem sabia que sua maior vontade era arrancar aqueles laços do cabelo, botar a saia na cabeça e mostrar a calcinha para quem no parque quisesse ver. E, na verdade, todos no parque estavam tão contentes em suas escolhas que nem viam a calcinha de ninguém; isso era coisa de mamães insuportáveis que tentavam barrar suas filhas felizes.
Anos mais tarde eu soube: a calcinha dela era azul.

sábado, 2 de outubro de 2010

CONTANDO SEGREDOS

Saudades de você e do bem que me quer. Como pode, meu Deus, amar-se tanto uma mulher? Elas são esquisitas, choronas, dengosas e frágeis [nem todas], mas deve ser porque são cheirosas, macias, risonhas e inteligentes. Vai saber, né? Por isso é que sinto saudade de você, porque você consegue me amar do jeito que sou: mulher. Às vezes - menina. Com esta memória de passarinho, que esquece de datas e se lembra de cantar. 
Estou sentindo seu cheiro, sabia? Parece mágica. Estou, realmente, sentido o seu perfume, como se a saudade conseguisse transportar máteria. Na verdade, eu sempre soube que saudade transporta muita coisa, inclusive, pedaços de meu coração. Ah! Mulheres são exageradas. Mas você ama, né?
Eu tô triste e feliz e porque sou mulher não consigo explicar o porquê de nada disso. Nem adianta tentar colocar tudinho numa prateleira e racionalmente discernir motivos para este misto de sentidos; você sabe que eu derrubo tudo, que confundo sua arrumação, que estrago seu tapete fazendo minhas colagens e você só sorri. E num sei pra quê lembrei-me de seu sorriso. Agora é que perco meu pinguinho de juízo e sem juízo assim, deste jeitinho, é que sinto sua maior vontade de me proteger. Sei que pensa assim: "vou abraçá-la até que ache o tino", daí eu não acho mesmo pra ficar agarrada em você.
Mas quem te protege sou eu; quando acha que já sabe das respostas eu te mostro meu senso de orientação e o mapa de cabeça para baixo. Das coisas que não quis ver, das coisas que nem quis saber e das outras que te sonegaram - eu sabia. E é por isso que meu colo é infinito, para que mais ninguém te encontre.
Vou lhe fazer um pedido e quero que anote aí [como se fosse preciso pedir]: não vamos brincar de segredos, porque me despi dos mistérios assim que me vi em seus olhos. Depois disso eu também me pergunto: como pode, meu Deus, amar como uma mulher?





sexta-feira, 1 de outubro de 2010

AQUELE ABRAÇO!

Abraço é engraçado. Lembro sempre mais dos abraços que dos beijos. Beijo é pequeno e abraço é gigante. É corpo todo, é um mundo inteiro que se abre e se encontra. Lembrança... saudade... cabeça no ombro, pé no pé, os braços selados por detrás dos corpos e respiração de "te achei". Sem lá fora, sem mundo todo, sem mais quem passe na porta, sem mãe, sem pai, sem outros alguéns - só aquele abraço. E eu te amo ao pé do ouvido.
Estou sentindo a falta do abraço e parece que vou sentir sempre esta falta, ainda que o tenha todos os dias [um dia]. Abraço mata e dá sede de mais abraço. Engraçado que sentindo sede e soltando água; vai entender a saudade!
Como é que alguém pode, meu Deus, viver tanto tempo sem abraçar? Não estou falando daquela coisa social de cumprimento vão. Não. Eu estou falando do enlace de alma e de um querer tão intenso que faz o coração correr a gargalhadas. A mão esfria, o sorriso fica nervoso e dançam os olhos [nos olhos]. Momento cri-cri-cri porque não se precisa das palavras e nem se sabe o que dizer e sabendo não há necessidade. Abraço rouba tudo: ar, segredos, medos, dúvidas, certezas.
E num dia destes receberei aquele abraço certeiro que transforma meio num inteiro, que transmuta rio em mar. E é aí que mora a graça do abraço: são dois corpos em direções opostas, mas almas que vão para o mesmo lugar.