quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

ALMA GÊMEA

Toda mocinha sonha, todo rapaz quer
Um dia, ele virar homem, ela, virar mulher
Tudo isso porque espalham
Que no mundo melhor não há
Encontrar a outra metade
E num belo dia se casar.
Contam os antigos
Claro, em forma de lenda
Que encontrar esta outra banda
É mais que uma prenda:
Felicidade colada em superbonder
Na própria alma gêmea!
Daí é um corre-corre
Caça daqui, procura de lá
Solidão vira um porre
E não oportunidade de pensar:
Se alma gêmea é bom mesmo
Por que não, com o espelho casar?
Aí a mocinha encontra o rapaz
O homem corteja a mulher
Todo mundo perde a paz
Pra se enfiar na arca de Noé
Quem entra respira feliz
Escapou do “salve-se quem puder”.
Pra selar este contrato
Compram-se alianças
O noivo pode beijar a noiva
E fabricar umas crianças
No dia é só felicidade
Mas depois – quanta mudança!
Essa tal de alma gêmea
Se mostra uma bela furada
O doce suspiro da festa
Se transforma em gemada
A mulher falando em grego
E o troiano entendendo nada!
A aliança linda de ouro
Não passava de emblema
A gêmea alma amada
Vira uma alma com algema!

{Dedico este singelo poema ao meu amigo Luix, que me inspirou com seu humor ímpar}

domingo, 20 de fevereiro de 2011

SEREIA - ILUDIDA EM SEU CANTO

Se eu desse aquele mergulho, poderia até não ser fatal. Eu não cairia de cabeça, porque já não consigo mais – talvez. Mas eu levaria muito tempo para voltar à margem ou mesmo voltar à tona. Não teria encantamento que me libertasse do peso que recairia em meu cérebro de peixe. Não teria toco em que me agarrasse no meio da correnteza, cuja deriva evitasse-me a precipitação da cachoeira de arrependimento. Seria vão lembrar minha natureza mágica – certos feitiços viram-se contra quem os conjura.
Não consigo ver além. Não me imagino por mais de duas semanas nadando neste mesmo rio. Talvez por medo de que esteja sendo vista como uma sereia, medo que meu canto seja belo porque está longe e que de perto eu seja mais um peixe nesta rede. Não é o velho e bom medo de sofrer. O que sinto é diferente; é quase uma certeza de que quando a lenda for fato, será lançada às páginas do jornal de ontem, tão vivo, tão real e pretérito imperfeito.
Aquele pescador não pesca em águas profundas, não sabe nadar em mares bravios e eu seria a Iara sentada na pedra – enquanto continuasse sentada na pedra. Que eu me lançasse nestas águas – num instante viraria lenda.
A sensação de ser história bonita, a ser contada a meia dúzia de outros pescadores, não me abandona. Reforça-me a certeza de que eu sempre serei lenda aos olhos cansados dos que navegam entre miragens. Reforça-me o medo de que certos olhares jamais se sustentem a ponto de desfazer a ilusão de que sou intocável.
Talvez eu mereça esse exílio junto ao saci-pererê, junto ao lobisomem, mula-sem-cabeça, caipora...  Tem gente que jura que já viu, mas ninguém crê. Tem gente que até crê, mas não quer ver nem pintado de ouro. Ô sina! Deixa eu voltar para minha pedra.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

DESANIMAL

Feito cobra a gente vai, de vez em quando, largando os velhos rastros, as rotas peles, pela estrada, numa pedra, num toco escorado no meio do deserto. Feito um velho leão a gente vai de vez em quando aprendendo a ceder o terreno, não andar em bando, ceder a chefia, perder pro mais novo. E vai se desselvajando devagarinho, domesticando a própria ira revelando mentiras que contou no caminho: mostrando a face em ruga, miando baixinho, arranhando sem nada mais rasgar.
É preciso dar-se à forja e deixar a fera de fora do cercado - quem sair da linha toma chicotada. Cadê que passarinho bate? Cadê que andorinha grita? Quando preso na gaiola, se de tristeza não morre, aprende a fazer da grade morada de melodia. Canta, pula, bica e pia - se contenta em voar baixo.
Cão que morde a mão do dono vive com estrangulador no pescoço - é preciso fazer graça, rolar, deitar, dar a patinha e fingir de morto. Bem melhor ser descãozado, que ter corda no pescoço!
A gente vai caminhando e aprendendo a revirar a natureza, desembrulhar o estômago do papel da rudeza; não ser mais arredio, nem guardar mais braveza. Um dia, para aquele que foi predador, sorri o lugar de presa.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

DANDO BANDEIRA.

É que de vez em quando é mesmo preciso dar bandeira. Dar na telha e mostrar o que se é, dar a entender ou dar no pé, mas mostrar aquela vontade sua.
É bom, menina! Dê com o olhar a bandeira que quiser, seja o que quiser ser, mas saiba que bandeiras há que nada negam de você. Se verá tremulando, tremendo em algumas delas. Se você se importar, então não saia de casa! É inevitável dar bandeiras de si mesma de quando em vez. Pintar-se, enquadrar-se, arredondar-se e gritar um lema Positivista no meio da própria vida, para depois [ou sempre] guardar em seu imo a sensação de que nas suas entranhas sua riqueza é bem maior, seus rios são mais caudalosos, seu céu troveja mais intensamente e aquilo que aparece é tão somente uma bandeira...
É porque é assim: bandeira é uma pontinha do lençol sob o qual você se esconde nua. Bandeira é aquele rabinho de olho flagrado devargazinho sendo desmanchado. Bandeira é aquele altear da voz falando uma coisa e dizendo outra. Bandeira é aquela saia que você veste quando está triste para disfarçar que sua beleza é quase dor. Bandeira é a voz meiga que você finge quando o dengo é o único remédio que passa sua mentirosa dor de cabeça. Bandeira é pedir que sopre o machucado, “mas onde?”, “aqui ó”, bem no pescoço. Bandeira é so uma desculpa, é só um retrado, é uma súplica, um contrato.
É sim. Você é a própria porta-bandeira. Carrega pesadas lantejoulas, roda saias em toneladas, ainda samba sorrindo e caminha aqueles quilômetros da Sapucaí diária. Toda festa tem, porém, seu fim; uma hora você cansa e tudo o que você pedirá, no pingar das últimas horas do dia, é que alguém te traduza em silêncio, decore a letra e melodia do seu hino, marche na direção do seu berço esplêndido [no qual ele deitará eternamente], descanse em teu seio, diga que não há bosques com mais vida que o teu, faça o teu céu risonho e límpido e mesmo que ele tenha tido amores entre outras mil que seja tu a pátria amada.
E que essa tal sagrada bandeira seja esse contínuo dar a entender, afinal de contas toda pátria tem fronteiras!

sábado, 5 de fevereiro de 2011

METÁFORAS


Um carro batido e com multa – além de não ser do ano.
Um riso ambulante.
Vitrine de entranhas.
A ponte.
Poço de felicidade.
Poço de teimosia.
Mosca morta, lerda, que caiu na sopa e dela se arrasta – e suas variações.
Tudo em minha vida.
Uma cobra.
Coração ambulante.
Manteiga derretida.
Palhaça.
Rouxinol.
Cigarra.
Espoleta.
Alguém com uma melancia no pescoço.
E mais todas as outras metáforas que me jogam à cara. Escrevem meu nome em negrito. Falam de mim em itálico. Sublinham minhas ações. Tacham outras verdades. Embora eu bem saiba que metáfora é uma lupa arranhada, algumas delas me marcaram e cicatriz é também palavra.