domingo, 7 de abril de 2013

ACORDADA


É bem bom pensar que é criança e esquecer os medos de agora, só lembrar os da infância. Os de outrora traziam consigo aquela inocência e sumiam quando a luz se acendia. Os de hoje não respeitam as regras, as luzes acesas, o colo da mãe, os cobertores – nada. Eles não se escondem atrás da porta, debaixo da cama, nos vãos das escadas. São medos ousados, sem escrúpulos, sem precedentes.

Mas quando finjo que sou criança, os medos não vão embora: eles zombam de mim. Dão na minha cara, como nos porões de 64 e atormentam as esperanças, as crenças, meus calcanhares. Pisam em minhas birras, esfregam-me a fuça na realidade.

E assim mesmo, no medo, eu afirmo que um ser sem temor perde o equilíbrio e engatinha pro quarto escuro, enfia os dedos nas tomadas, sobe no poste e pousa nos fios de alta tensão. Um ser que não teme qualquer coisa está em perigo, mas ter medo de tudo é correr o risco de viver sob a proteção da inércia. E o que fazer com o medo? Não sei. Talvez esperar a madrugada passar – a qualquer tempo, em qualquer fase, quando a madrugada passa é hora de se levantar.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

"EU GOSTO DE SER MULHER"




“É difícil de acreditar, mas uma sobrevivente de estupro de 15 anos de idade, nas Maldivas, foi sentenciada a 100 chicotadas em público!

Não, eu não acho difícil de acreditar e lamento infinitamente por isso. Lamento por tudo. Lamento por não achar difícil crer que algo assim aconteça, lamento por isso acontecer, lamento por esse mundo. E eu não queria só lamentar. Eu queria fazer mais.

A carne desta menina de 15 anos vai se abrir em feridas sangrentas por ela ter sido vítima de estupro. A cultura que permite isso nos choca sobremaneira e nos revoltamos, nos indignamos com esse ato, com essa dor infame por cima da outra dor que ela já sofreu com o estupro. Pensamos no absurdo de uma ação deste tipo e se pudéssemos iríamos lá resgatá-la, arrancá-la dos braços institucionais de seus algozes. Pobre menina...! Essa criança teve o azar de ver sobre si o peso dos 50% de chance de ter nascido mulher. A probabilidade, embora aponte para a justa divisão de metade e metade, nós sabemos (e fingimos não saber) que os 50% de chance de nascer uma mulher é perder um jogo. Um jogo que já nasce perdido no mundo todo, mas de maneira diferente.

Você se choca com as chibatadas, mas não se choca ao ver alguém desejar nunca ter uma filha. Você se choca com o sangue escorrendo no corpo desta jovem, mas não se choca ao ver que os estupradores da New Hit estão soltos. Você se choca com o couro da vítima arrancado, mas não se choca com as justificativas do tipo: “eu sou homem, eu posso e você não!”. Você se choca ao saber que ela tem 15 anos, foi estuprada, vai apanhar feio por isso, mas diz que uma menina adolescente é uma vadia quando perde a virgindade.

Isso só quer dizer que todas nós merecemos apanhar. E é isso que acontece todos os dias: nossa alma é sangrada pelo machismo. O açoite e as vergastadas que ela possivelmente receberá vai ferir a carne de todas nós. E, na verdade, essas 100 chibatadas serão o símbolo doloroso do que é ser mulher. Porque ser mulher é ser sexy por ser inteligente (atributo natural do ser humano que numa mulher vira um adereço, para alguns, atrativo). Porque ser mulher é viver de pernas cruzadas, não subir em árvores, não falar alto, não falar palavrão, não saber dirigir bem, não gostar de futebol, não saber sobre política, não construir prédios, não reclamar dos elogios do pedreiro, não usar a roupa que quer. Somos os 50% que vivem sob a avalanche de “nãos”. Violência contínua e que se expressa no mundo todo. Há chicotadas que doem nas carnes de todas as cores e culturas das mulheres deste mundo.

E tem mais: a gente só acha belo uma mulher quebrar os padrões enquanto lê um livro de história ou vê uma novela anacrônica da Globo, cuja personagem Laura se divorcia, escreve artigos para um jornal, luta por causas coletivas e é feliz no final tendo um homem-parceiro que lhe entrega o prêmio por ser quem ela é. Ficção. Ou ter uma Isabel que engravidou de um senhorzinho de escravo (que a ludibriou, mas claro, ela era uma vadia por ter sido enganada), foi para Europa, virou dançarina, voltou rica e foi aceita pelo ex-noivo que (pasmem) assumiu seu filho. Fic-ção!

E, para mim, a preferência é o lamento. Porque acho pouco escrever este texto para ser julgada, questionada e confrontada mais tarde. Preço baixo perto do que tantas outras mulheres vem pagando. Quase uma liquidação, quase nada, só mais um lamento.

quarta-feira, 6 de março de 2013

"EDMORTE"



Então você acorda e a morte lhe dá “bom dia” nos telejornais. Como se ela fosse uma governanta chata. E é. A inexorável está todos os dias no mesmo lugar: nos corpos perecíveis. Ela comanda a cadeia do impermanente, do descontrole, do “sem chances de estorno”. Ela não se atrasa, não parcela no cartão. Para muitos é “morreu, acabou”, para outros – como eu – “morreu e recomeçou”; e para todos é A Certeza.

No controle remoto da vida, ela é o outro botão emperrado, que não funciona, que não acionamos a nossa vontade. Nem o “start”, nem o “stop” nos dão este prazer. E ficamos desesperados, impactados diante da imagem desta que não negocia com ninguém. E por mais que tentemos soprar a fogueira que mantém um coração batendo, por mais tentemos reacender a brasa prestes a sumir nas cinzas, a morte trabalha como a gravidade – não se levita por muito tempo neste planeta.

Suas táticas e seus procedimentos operacionais vão desde uma doença “braba” a um engasgue com farinha e, para ela, tudo é uma desculpa para se fazer cumprir o cronograma do dia. Não se eufemiza sua presença – ainda que tentem –, não há metáfora que a supere, porque a dita cuja é um tiro de fuzil com mira a laser. Dizem os que a estudam que ela não dói; morrer não dói para quem morre, morrer dói para quem vive. Morrer dói para quem sobrevive, para quem também a espera (não como quem a deseje). Ela deixa um guizo sinistro na vida dos que aguardam sua vez na fila e quando soa a própria hora o samurai de capuz preto cumpre seu papel e ele quase nada exige: para morrer, basta estar vivo.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

"UMA PAUSA DE MIL COMPASSOS"



Quero o silêncio gritante do vão do sim. Quero apenas o silencioso vento da paz... À prova de muros, murros, socos e pontapés de incompreensão, quero silêncio produtivo e não-vão. Ali onde mora o perigo de não ser entendido, essa é a casa do silêncio que quero invadir, pois que já não há tantos perigos assim – se metade é incompreensão.

Nadar no nada e banhar-me de explicações de tudo, de onde foi parar aquele mudo mundo, onde foi morar a porta aberta do riso calado, que neste mundo solitário é bom remédio de amor. Se as palavras são gastas e bastas de intradução, melhor casar-se com o silêncio e fazer do tempo um vagão. Viajar no vento calmo das verdades que brotam sazonais – com hora de serem compreendidas sem negação.

Eu quero – pelo amor de Deus -, eu só quero o mute sem os trovejares de grilos por detrás dos matos, das moitas: som traiçoeiro que açoita meus ouvidos e não acalmam o estribo  e repetem insistentes como ladainha, como vazia oração.

Sem violência. Pode vir manso o silêncio, na calma companhia da dama harmonia. Sem exasperação, como quem breca um cavalo louco, descendo a ladeira íngreme da vontade. Não quero que se calem todos – vão, aos poucos, ficando roucos de me fazerem sofrer. Se for, assim, também pode ser. Que rouca fique a ingratidão, afônicos os desaforos e que nunca mais façam coro atormentando minha parca paz. Cala-te inveja madrasta; de mim e dos meus te afasta – afoga-te em próprio fel.

E enquanto o corcel da maldade se afasta, um gole de silêncio me basta e, por hora, nada mais rogo ao Céu.

sábado, 26 de janeiro de 2013

DURAS PENAS


E se eu fosse diferente? E se meu rosto tivesse outros traços e meu coração outros medos? E se eu fosse indecente? E se minha honra fosse muda e minha consciência ausente? Se eu fosse assim, eu seria outra e não veria o que sou de mim. Se eu fosse avessa, torta e prepotente eu pertenceria – com toda certeza – a outra classe de gente. Estaria classificada, com etiqueta e tudo, a viver na prateleira de um outro grupo no mundo – não o meu.
O meu grupo é da raça dos que são coração mole. Eu sou da laia dos que não tem um bom cartão de memória: não guardo muita coisa, tenho a alma “bugada” e já arrastei corrente, mas evito guardar mágoa. Eu sou um pombo de praça: carrego meus micróbios, não sou exuberante, como qualquer bobagem, mas adoro estar perto de gente. Apesar de gente ser bicho estranho, que não controla a própria mente!
Mas se eu fosse de outra espécie mais pomposa, que vivesse numa gaiola em meio à calmaria, talvez eu não comesse alpiste e me alimentasse de iguarias. Teria um estômago seleto e um cocho repleto de coisas apetitosas, que nenhum pombo sonharia. E eu lá saberia viver assim? E aqueles que se orgulham de mim? Para eles eu não sou um bicho tosco que carrega na asa um tom pastel e para mim mesma eu sou bicho de moela forte que não deixa de migrar pro norte e se prender na linha de qualquer carretel.
Aprendi que não posso mais voar para trás e não posso ter outra face: sou esse pássaro anônimo que ama a própria classe.