terça-feira, 27 de março de 2012

[SÓ] VASO


Não desejo que meu coração se reagregue, porque estou ferida e sei que isso é meu. Não há culpados, nem desordeiros que avançaram sobre as tendas empoeiradas e derrubaram tudo; eles vivem como sabem - eu expus o que tenho. Fui eu, na vã escolha do passado, que optei por morar no deserto. Exilei-me dos ventos do litoral, exilei-me da segurança dos barcos ancorados e fui ter com mar bravio. Depois dele, só deserto. Nada de mar e rio, a não ser o peito - correndo em leito salgado.

Os vasos caídos, os cacos nascidos e mais uma vez a cola retorna às minhas mãos tentando reaver com arte a parte que sobra do meu coração. E parece que ele sempre sobra. Por isso desisto de colá-lo e irei deixá-lo nos pés do deserto, bebendo da areia que chove dos montes movediços e cantantes que vejo de perto. Tudo que crio aqui se esvai e esta parte que o deserto me subtrai não faz falta nas futuras canções.

Melhor outro dia ter um novo vaso e este quebra agonizante, abraçado à dor uivante de ter morado no castelo pisado por bandoleiros. O que levo aqui comigo é outra coisa, outro abrigo que oferto ao mais corajoso, destemido beduíno. Não é nenhuma riqueza, nada que os salteadores tenham me levado. Não reluz como ouro, não compra comida e casa e não pode ser vendido, vilipendiado ou ferido. É o conteúdo dos vasos quebrados: água de esperança. E o coração que permaneça partido e que o tempo o corroa, transforme-o em areia; que o vento o leve e ele volte aos pés do mar em que estava antes de morar nas areias de tão ingrato deserto.

sexta-feira, 23 de março de 2012

CONTA DA LUZ


Uma das grandes maravilhas que possuo é minha família. Todas as vezes que eu precisei de apoio, ainda que eles não concordassem comigo, estiveram ao meu lado. Os meus pais não são perfeitos, mas ainda que estejamos nadando em divergência, eles me acolhem. Não desrespeitam meu sofrimento, não ultrapassam o limite do sinal vermelho e sabem reconhecer uma bandeira branca suspensa. Os meus irmãos são parceiros de muitas horas. Eles são caladões, não sabem florear palavras e frases de efeito, mas guardam um abraço dado de maneira torta, ou um aperto de mão dizendo do apoio. A minha filha, essa ficou por último porque tem sabor único. Ela me disse, num dia de tristeza, uma frase assim: “mamãe, pessoas vão e pessoas vem, mas eu sempre estarei contigo”. E é verdade. Ainda que ela sinta um ciúme muito grande, ela me partilha com quem chega, ela sabe calar a própria vontade de me reter – talvez porque tenha percebido que mãe dela eu jamais deixarei de ser.

Os outros grandes tesouros que possuo são meus amigos. Estes são muito presente. E porque são meus amigos, me abraçam, me confortam, me buscam, me atingem no coração. Eles me mantêm de pé porque não me deixam esquecer que laço não precisa de pedigree. Precisa de afeto e lealdade. Porque sem estas duas coisas qualquer coisa pode acontecer, menos amor. E amizade é amor primário, primaz. 

A esperança que guardo em meu peito vem do fato de que, embora minha estrada seja só minha, eu não estou sozinha. Não estou esquecida destes corações. E na ocasião do meu 31º aniversário, recebi a enxurrada de certezas de que vale a pena continuar sempre amando. 

E agora, enquanto escrevo este texto, eu lembrei que um ex-namorado me falou uma vez, em seu jeito bronco de ser, que “a gente paga a conta da Coelba todos os meses em dia, mas se a gente não paga um mês, eles cortam a luz”. É assim mesmo: luz a gente tem que se esforçar para ter e de graça mesmo só a do sol, que mesmo assim, foge depois das 18 horas. E nenhum dos meus amores fugiu depois das 18horas, isso deve ser porque ando pagando a conta de luz.

quarta-feira, 14 de março de 2012

ESTA ALMA

Minha alma está vazia. Não, ela não está morta, nem triste, nem alegre. Está em silêncio. Certeza de estar tudo certo. Vão do que virá, porém. Nenhuma dor - foi toda chorada. Nenhuma espera. No aguardo de nada. Nem milagres, nem quimera. Não caminha sem rumo, ao léu - vai certa. Presa na terra, com os olhos pro céu. Não me procure mais lá - onde não estarei. Não me espere lá - onde vou chegar. Apenas sei que minh'alma está a se encher - do que serei.

quinta-feira, 8 de março de 2012

DIAS PARA QUEM SE SENTE MULHER



Não existe doçura nata. O jeito especial de amolecer a vida com um gesto brando, vem do esforço de se tornar dócil, paciente, aconchegante, acolhedor. Tudo é exercício, firmeza e foco. Claro que há algumas pessoas que trazem essa marca estampada na testa, fazem da doçura o seu cartão de visitas e atraem para si um monte de formiguinhas famintas.

O mesmo se dá com a maternidade. Nem todos são maternais. Maternar é um exercício que até as mães precisam se esforçar para praticar. Exige abnegação, doação do tempo, do colo, do coração. Exige altruísmo sem esquecimento de si mesmo. Por isso que tem muita gente que não abraçou para a própria vida a escolha de maternar, uma vez que ainda não se sente apto para sair de si mesmo, decidir amar alguém, detendo-se um pouco no caminho pelos filhos do coração.

Engana-se quem encerra a doçura e a maternidade à condição de ser mulher. Digamos que o ser mulher nasceu com instrumentos físicos que auxiliem no desenvolvimento destas [que considero] virtudes. Mas todos possuem coração e é neste local que cultivamos a doçura e acolhemos filhos - que podem ser amigos, desconhecidos, pessoas que nascem da gente, nossos pais, o inimigo.

Não coloquemos no terreno do automatismo estas duas condições da alma que ama, porque estaremos sendo injustos com quem lutou para se tornar assim. Não existe nada que esteja construído que não tenha começado pela vontade de alguém. Não existe nenhuma característica existente em nós que não seja alimentada diariamente pelo nosso esforço de que ela continue viva. E esta regra rege as coisas boas e ruins.

Portanto, hoje, no dia internacional da mulher [aquela a quem se convencionou associar estas duas virtudes], eu parabenizo a todos que possuem a alma no ponto certo de doçura e o coração na temperatura certa do amor. Não estou tirando o significado histórico da data, não estou diluindo a luta da mulher nestas palavras; apenas aproveito o dia para mexermos em nossas distrações, que atrelam toda essa maneira de amar a condicionantes de gênero, porque ser mãe não é possuir útero.

E para aqueles que acreditam em Deus: já pensou que Ele pode, muito bem, ser Pãe?