quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

SEM ADOÇANTE



Eu tô pensando naquelas "pessoas-adoçantes". Sim, aquelas que são doces, muito doces, estratosfericamente edulcoradas, mas guardam um péssimo sabor residual - lembrando que esta doçura é pura falsidade. Tal qual o adoçante imitando o açúcar, até conseguem enganar e depois, lá no final, na pontinha da língua, olha o travinho lembrando que essa doçura é estranha, estrangeira, forçada, artificial.

Doce é a gentileza que deixa marcas reais, indisfarçáveis em nossa vida. Como a profundidade do gesto de um desconhecido comigo, noutro dia, quando na ocasião da greve da PM em Salvador. Saí do trabalho e para ele não levei mais que uma cópia de meu RG e o cartão de transporte. Sem celular, sem atavios. Nada que os ladrões pudessem arrebatar do pouco que tenho - e que me é caro. Parei no ponto junto com os demais trabalhadores, quando vi um homem de vestes simples e uma mochila surrada nas costas. Negro. A mochila dele estava aberta e deixava à mostra documentos, talvez importantes. Na dúvida, toquei em seu braço, numa intimidade estranha: "moço, sua mochila está aberta". Sim, ele ficou um pouco sem jeito e me agradeceu. A verdade era que o zíper estava quebrado e havia um tempo, ele sabia disso e ficou com vergonha. Mochila também surrada. Meu coração apertou devagarzinho.

Veio o ônibus e nós dois demos a mão para o mesmo Barra-num-seiquê; entramos, ele primeiro e eu depois. Passei na catraca e sentei. Uma mão - a do cobrador - tocou com a mesma intimidade estranha o meu ombro e num sorriso me lembrou que eu tinha esquecido de passar meu cartão antes de atravessar a catraca. E agora? O cobrador com um sorriso dos ricos de alma me disse que logo entraria alguém e essa pessoa trocaria comigo: pagaria em dinheiro a minha passagem e eu poderia passar tardiamente meu cartão. Esperei. Esperei. Fiquei nervosa, pois só tinha R$1,90 numa bolsinha de moedas e o ônibus em Salvador custa absurdos R$2,50. Nada de entrar alguém. Eu em pé ao lado da catraca, pedindo desculpas a um cobrador feliz e o ponto em que eu iria saltar se aproximando célere.

Eu olhava para aquele negro trabalhador, que iria arcar com minha passagem e não acreditava que ele sorria docemente, em seus brancos dentes como pedrinhas do mais genuíno açúcar. Ele não vai brigar comigo? Como ele sabe que eu não estou querendo dar o calote? Sem dúvida ele trazia o coração nos olhos e nos dentes; "menina, calma, vai vir alguém". E depois que sua profética frase soou, eu ouvi alguém perguntar: "o que está acontecendo?". Virei-me e já sem jeito, expliquei à voz toda a situação. Era o moço da mochila aberta, de coração aberto se interessando por meu calote culposo. Ele meteu a mão no bolso e dentre alguns miúdos retirou os R$2,50 da minha passagem e a pagou. Peguei minhas moedas e lhas dei. Meu olho molhou, eu apertei sua mão e disse que estava lhe devendo essa. Ele deu um sorriso-açúcar e disse que não era nada. 

É tudo, meu irmão. Desse tudo que preenche a vida de doçura e custa aquele pouco que se tem no bolso. Ou aquele tudo que não custa dinheiro algum, mas faz diferença na vida de outra pessoa, só porque é de verdade. Só, não... sobretudo porque é verdade. Como o sorriso que recebi de uma velhinha distinta no Campo Grande. Ao findar mais um dia de trabalho, voltando pra casa, a cidade ainda sob o bafo estranho que fica despois do Carnaval, da quarta-feira de cinzas, cheia de bêbados, cheia de escusos perigos saindo dos camarotes semi-desmontados, quando encarei uma senhorinha e ela me deu um doce sorriso que desfez a tonelada de meu peito opresso. Sem adoçante.

5 comentários:

Luiza Guimarães disse...

Você adoça a minha vida. Com açúcar.

Cláudia Isabele disse...

lindo, lindo!

Saulo Dourado disse...

Com açúcar e com afeto, fez-me o doce predileto...

Paty Michele disse...

O mundo está cheio de pessoas assim, a gente só precisa prestar atenção.

um sorriso doce pra ti
:)

Sâmia disse...
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