Caminhando por muito tempo dentro do próprio coração, com os pés sangrando de descobrir sensações guardadas. De quando criança, de adolescente, de quando me olhei no espelho e me vi gente pela primeira vez, lembranças de mulher há tão pouco tempo mulher...
Recordo-me que fiz um caminho cheio de tapetes e ácaros, segredos e espelhos, máscaras e sorrisos; e num tempo, num momento, em alguns segundos me entrego ao fato de que tudo sou eu. Não há outras de mim que não sejam minhas. Sou todas eu. Sem alicates e pés-de-cabra, saem algumas delas num momento de distração e, nem tanto por saber compreendê-las, elas vêem pedindo passagem, rasgando véus, pulando muretas, ruindo as muralhas e me olham no fundo dos olhos. Dizem-me: "voltei" - uma a uma. E como crianças bravias, indisciplinadas, raivosas, me cobram ser corajosa com elas todas.
Num tempo eu não sabia o que delas dispor, poderia, como sempre, mandá-las para as portas do país mentira, mas elas viriam cobrando respostas mais densas e eu as exilaria no país falsidade e elas retornariam chorando à pátria coração e eu ficaria cega de mim mesma. Mas hoje, mas agora, eu resolvi que não há mais a perder. Os edifícios deixaram de arranhar os céus, não é mais tempo de perder o chão e criar despenhadeiros onde enterrar a verdade. A verdade é que não há uma mulher de mentira, uma menina dos sonhos, uma perfeita idiota que agrada o público sendo a palhaça chorona. A verdade é que eu não preciso mentir sobre as mulheres que habitaram em mim, porque elas é que são personagens mortos e eu vivo no silêncio do hoje.
Não existem poças de lágrimas, porque não há quem chore a ponto de afogar mágoas. Ninguém precisa de uma metáfora para sofrer - todos sofrem no limiar do que é humano. Não existe morrer de rir - a cara passa a doer depois que o picadeiro fica vazio. E meu colo é seletivo - dormem sonos que convido.
Abandono a perfeição agora, a perfeição cenográfica; aquela que não se improvisa - se ensaia todos os dias. Abandono uma fantasia e fico vestida de minha pele. Sambo um samba sem cadência, calço sapatos sem aderência e escorrego no meio-fio da passarela. Agora é sem desfile, sem flashs.
Saio de cena: entro na vida.
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